segunda-feira, 11 de julho de 2011

Petição pública, carta aberta pela preservação do patrimônio bageense



CARTA ABERTA DA SOCIEDADE CIVIL BAGEENSE
- PELA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO DE BAGÉ–
- PELO DESENVOLVIMENTO DOS POTENCIAIS CULTURAIS E TURÍSTICOS DA CIDADE E DA REGIÃO DO PAMPA GAÚCHO –
- PELA MANUTENÇÃO DA CULTURA, DA IDENTIDADE, DAS DIVERSIDADES E DO IMAGINÁRIO LOCAIS -

Os municípios devem promover o desenvolvimento das cidades sem a destruição do patrimônio. Essa frase, que se encontra na página virtual do IPHAN, aponta para uma verdade bastante simples, de fácil aplicação, e que pode trazer imenso benefício a todas as localidades que a adotarem. Essa verdade poderia também ser resumida da seguinte forma: o desenvolvimento não é a destruição do que já existe, mas a preservação aliada à inovação.
Com base nisso, vimos por meio desse documento expressar a preocupação da sociedade civil bajeense com a preservação dos traços arquitetônicos, históricos e culturais da cidade, e também asseverar a necessidade de políticas amplas, profundas e decisivas no sentido de manter e respeitar o patrimônio edificado de Bagé – patrimônio que é uma parte essencial da cultura, da identidade e do espírito local. Essas políticas e iniciativas podem e devem surgir a nível municipal – mas é também de suma importância a articulação do município com os órgãos encarregados da preservação do patrimônio, como o IPHAN e o IPHAE. Felizmente, essa articulação já vem sendo formada a partir de processos institucionais, graças à iniciativa de bajeenses preocupados com a preservação de nossa cultura. Vimos por meios dessa carta aberta expressar o apoio da sociedade civil a essas iniciativas, e manifestar o desejo de que medidas definitivas e abrangentes sejam tomadas em breve – para que não se repitam cenas lamentáveis de destruição, como as ocorridas recentemente no Jardim do Castelo e em outras partes da cidade.
Bagé está crescendo. O crescimento econômico é uma realidade há muito esperada, e justamente celebrada. Contudo, não existe contradição alguma entre desenvolvimento da economia e preservação do patrimônio histórico e arquitetônico. Com efeito, como se verá ao longo desse documento, o único desenvolvimento sustentável é aquele que respeita, mantém e, se necessário, restaura as características culturais, paisagísticas e históricas de determinada região.
Existe uma concepção equivocada de que o crescimento econômico exige a destruição do velho – termo usado sempre de forma pejorativa – para dar lugar ao novo – ou ao moderno, que assume a forma de um valor absoluto e inquestionável. A verdade é bem outra: nada há de mais retrógrado do que destruir o patrimônio de uma comunidade. A idéia de progresso como destruição jamais deu certo, em lugar algum do mundo. Diversas cidades brasileiras adotaram esse modelo errôneo de desenvolvimento, que se fundamenta na destruição de áreas urbanas consolidadas e na verticalização abrupta, impensada e mal planejada. Esse modelo não apenas descaracteriza culturalmente as localidades, como também gera paisagens urbanas caóticas e pouco atraentes a visitantes. Trata-se, acima de tudo, de um processo de desumaização das cidades, em que o próprio conceito de espaço público fica relegado ao esquecimento.
Em diversos países emergentes, essa noção equivocada de progresso está levando a uma situação desesperadora. Cidades históricas como Xangai, Moscou e Beirute encontram-se hoje sob risco de total descaracterização. Na China, a aplicação desse modelo foi responsável por mais destruição de sítios históricos nos últimos anos do que a Revolução Cultural de Mao-tsé-tung. No Oriente Médio, o citado modelo devastou mais paisagens arquitetônicas históricas do que todos os conflitos pelos quais a região passou nas últimas décadas. Surge diante de nós uma perspectiva melancólica: é possível que, num futuro próximo, já nada se encontre de tipicamente chinês na China, de tipicamente russo na Rússia, de tipicamente árabe nas cidades árabes. A arquitetura e os desenhos urbanos são expressão de um povo e de sua cultura; quando essas manifestações materiais são destruídas, a própria cultura local está em risco. Se nosso patrimônio edificado continuar sendo demolido, chegará um dia em que viajantes hipotéticos já nada encontrarão de tipicamente bajeense em Bagé.
Cabe aqui relatar uma anedota histórica. Existiu no final do século XV e início do XVI, um militar e cosmógrafo espanhol chamado Juan Ponce de León. Cansado das paisagens conhecidas da Europa, resolveu lançar-se, já bastante idoso, à procura de visões novas, inusitadas, autênticas. Embarcou em um navio que cruzou o Atlântico e, em 1513, próximo ao fim de sua vida, tornou-se o primeiro europeu a avistar a Flórida. E então fez uma prece: “Obrigado, Senhor, por ter permitido que eu veja algo de novo”. Pobre da humanidade, se chegar o dia em que já nada de novo possamos encontrar ao redor do globo – nenhuma visão autêntica, apenas paisagens idênticas, homogêneas e descaracterizadas.
O Brasil é um país imenso. Não faltam às nossas cidades áreas a urbanizar. Em Bagé existem diversas áreas desse tipo, que na verdade se beneficiariam com a construção de novos empreendimentos imobiliários. Para que a cidade cresça e se desenvolva, não é necessário destruir e descaracterizar paisagens urbanas que fazem parte da história, da imaginação e da cultura locais. É preciso que as cidades brasileiras, incluindo Bagé, cresçam primeiro horizontalmente, e só depois verticalmente – que novos terrenos sejam ocupados e urbanizados, e que as zonas já tradicionais e consolidadas sejam mantidas. A verticalização brusca e sem considerações histórico-culturais gera áreas urbanas degradadas, desvalorizadas e aculturadas. Um projeto de urbanização ponderado e respeitoso à preservação histórica, por outro lado, gera um crescimento real e um verdadeiro progresso, na correta acepção do termo: cidades com novos bairros e novas oportunidades, que, contudo, mantêm suas áreas históricas preservadas. Sem isso, as cidades não crescem: incham.
Falamos, há pouco, de uma noção incorreta de progresso e desenvolvimento. Existe também uma noção correta e construtiva. O verdadeiro progresso é aquele que abre espaço para o novo sem destruir o típico, o autêntico, o tradicional. O verdadeiro desenvolvimento é aquele que utiliza as características próprias de uma região e de uma comunidade para atrair divisas e melhorar a vida de todos. No caso de Bagé e de toda a região do pampa gaúcho, uma política de preservação histórica, cultural e arquitetônica pode trazer grandes benefícios. A região tem tudo para se transformar em um pólo cultural e turístico – basta, para isso, que suas riquezas materiais e imateriais sejam preservadas. Sequer precisamos fazer uma comparação com a Europa; basta apontar situações mais próximas, como a de Colônia de Sacramento, no Uruguai, e Ouro Preto em Minas Gerais – cidades em que a preservação do patrimônio criou um mercado que a todos beneficia. Ainda mais próximo é o exemplo de Jaguarão, que entrou no mapa turístico regional graças à campanha pelos tombamentos, e que hoje atrai significativo número de visitantes não só de outras partes do Brasil, como também de países vizinhos.
A nível municipal, existem várias medidas que poderiam colocar Bagé no caminho do desenvolvimento de seus vastos potenciais culturais e turísticos. Embora a existência das atuais Zonas de Preservação Cultural já seja algo positivo, é necessário expandir as áreas de interesse. Primeiramente, a Zona de Preservação Cultural deveria ser expandida até abarcar a totalidade das ruas Marechal Floriano e Marsílio Dias, com suas transversais, assim como a rua Tupy Silveira, do Palacete Pedro Osório até a rua Artur Lopes. Mas vale lembrar também que o centro histórico é a região aristocrática da cidade. Seria interessante estender políticas de preservação e incentivo cultural aos chamados arrabaldes, onde ainda se encontram paisagens típicas de bairros populares do início do século XX ou ainda mais antigas – uma raridade no Brasil. Como exemplo, poderíamos citar os entornos da Praça das Carretas e da Santa Casa de Caridade, o Passo do Onze, o corredor de Santa Teresa, a rua dos Sargentos – territórios que deveriam também ser incluídos em zonas de preservação. Também é de fundamental importância levar a conscientização desses temas aos habitantes dessas zonas, para que compreendam que também suas casas, ruas e calçadas fazem parte do patrimônio da cidade.
Contudo, a simples existência de Zonas de Preservação Cultural não é o bastante. O princípio de preservação não deve ser apenas nominal; deve ser respeitado. Ou seja: é essencial que os órgãos municipais não concedam alvarás de demolição para imóveis antigos, de valor histórico e/ou estético. Em vez disso, deveriam ser criadas iniciativas para urbanização em outras áreas da cidade, preservando assim aquelas já consolidadas, que integram o imaginário e a cultura dos bajeenses. O esforço pela preservação urbana e paisagística deve incluir a manutenção da horizontalidade característica do local – ou seja, a construção de prédios altos deve ocorrer em áreas afastadas do centro e das Zonas de Preservação Cultural. O município conta com amplas áreas para o desenvolvimento do setor imobiliário; há inúmeros terrenos baldios, bairros nascentes e periféricos, áreas nas margens da zona rural, que poderiam ser valorizados numa política de expansão física da cidade – em vez de se construir uma cidade nova sobre a que já existe, destruindo seus traços característicos. Devem-se citar os exemplos do Jardim do Castelo e do Bela Itália, “bairros novos”, que foram desenvolvidos em áreas antes desabitadas ou pouco ocupadas, e que se transformaram em valorizadas regiões habitacionais.
Junto aos órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio no nível federal e estadual – IPHAN e IPHAE – asseveramos a necessidade de que o patrimônio cultural da cidade seja reconhecido com a transformação de Bagé em Sítio Histórico; que o Sítio Histórico de Bagé inclua a atual Zona de Preservação Cultural, as demais áreas mencionadas acima e ainda outras que tenham valor estético/cultural/histórico. Por fim, cabe acentuar que o tombamento ou a preservação de prédios isolados não basta: é preciso uma política que inclua a preservação de paisagens urbanas como um todo, incluindo não apenas conjuntos de imóveis, como também o calçamento e as ruas.
Asseveramos também que todas as ações aqui sugeridas são de extrema urgência, e devem ser efetuadas de forma rápida, para que desapareçam as atuais ameaças ao patrimônio edificado de Bagé e para que este se torne, enfim, um legado permanente para os bajeenses e para todo o Brasil.

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